Vício em apostas online atinge milhões no Brasil e já é considerado problema de saúde pública

  • 17/12/2025
(Foto: Reprodução)
Vício em 'bets' vira questão de saúde pública e deixa sequelas financeiras e mentais. “Eu vendi tudo. Vendi tudo, assim, da noite pro dia, pra poder colocar esse dinheiro, investir na aposta. Então, em uma semana eu aportei ali, sei lá, coisa de 200 mil, na outra semana eu tava indo trabalhar de bicicleta”, relata um engenheiro de 29 anos de Fortaleza, que prefere não se identificar. Ele luta contra o vício em apostas online e estima ter perdido mais de um milhão de reais em quatro anos. “Quando tu começa a jogar, tu esquece tua família, tu esquece tua esposa, tu esquece o teu marido, tu esquece do filho, tu esquece tudo, se isola.” Casos de jogo compulsivo como o dele vêm se tornando cada vez mais comuns no Brasil. O Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD III), com dados de 2023, aponta que cerca de 10,8 milhões de pessoas a partir de 14 anos jogam de forma arriscada ou problemática. Segundo especialistas, o vício em jogos virtuais, as chamadas “bets”, que podem ou não ser esportivas, já é considerado problema de saúde pública e tem Classificação Internacional de Doenças (CID): Transtorno do Jogo. Clique aqui para seguir o canal do g1 Ceará no WhatsApp “O transtorno do jogo é muito similar à dependência química, só que o jogo não tem um fator externo, como uma substância aditiva. Ele é totalmente simbólico, eu tô num aplicativo jogando, então não tenho uma substância, só um aparelho”, explica o psicólogo Magnum Freire. Muitas vezes, a pessoa começa a jogar por brincadeira, mas, ganhando ou perdendo, não consegue parar. “Às vezes tem uma tentativa e essas tentativas são fracassadas de parar de jogar. A pessoa, muitas vezes, precisa jogar cada vez mais ou apostar mais pra ter as mesmas sensações iniciais, como uma espécie de tolerância semelhante a algumas drogas. A gente tem também uma irritabilidade ou inquietação quando tenta parar”, afirma a psiquiatra Nayana Holanda, do Ambulatório do Hospital de Saúde Mental de Messejana, referência nesse tipo de tratamento no Ceará. LEIA TAMBÉM: Prefeitura de Aratuba lança edital para ter bet municipal Entenda o esquema de facção para controlar apostas Facção toma máquinas e exige porcentagem de apostas Foi o que aconteceu com o engenheiro. “Eu chegava no meu trabalho, sete horas, ia para a minha sala, trancava a sala e passava o dia todo jogando. Resolvia alguma coisa do trabalho pelo celular com o mestre, mas eu não saía da sala”. Ele conta ainda que “quando era necessário sair realmente para ver alguma coisa na obra, eu ia com o celular na mão, nervoso, ansioso, esperando bater aquilo ali que eu tinha colocado com aposta e era isso, era bizarro”. Grupos mais vulneráveis Vício em apostas online atinge milhões no Brasil e já é considerado problema de saúde pública Joédson Alves/Agência Brasil O mesmo estudo mostra que os grupos mais vulneráveis são pessoas de menor renda e adolescentes que, em tese, nem poderiam acessar jogos virtuais de aposta segundo a lei brasileira. Entre os que apostaram no último ano, 55% dos menores de 18 anos apresentaram comportamento de dependência, enquanto na população adulta esse índice é de 39%. No recorte por faixa econômica, 53% de quem ganha até um salário mínimo joga de forma problemática. Os homens são os que mais apostam, de acordo com o estudo. Eles correspondem a 64,8% dos apostadores, enquanto as mulheres, 35,2%. Foi um colega de trabalho que apresentou os jogos online ao engenheiro. “Depois que eu ganhei essa primeira aposta, comecei a jogar todo dia. Depois, comecei a jogar ao todo turno, comecei a jogar toda hora”, relata. A dependência fez com que o homem vendesse carros, moto e pegasse dinheiro emprestado. “Eu não tinha mais cabeça pra estar dentro de uma construtora trabalhando e sempre dando um jeito de apostar. Eu comecei a pegar emprestado com agiota e aí eu acho que foi quando eu consegui cavar um pouco mais o fundo do poço, né”, compartilha. Sinais de alerta Especialistas alertam que, muitas vezes, o apostador com transtorno do jogo tem dificuldade de se identificar como alguém dependente que precisa de ajuda. Muitos só buscam auxílio quando chegam a extremos levados pelo vício. O psicólogo Magnum afirma que “ele manifesta fisicamente insônia, grau de ansiedade altíssimo, tem episódios depressivos, ele projeta um ganho. Não ganhou? Fica triste, mas ele vai tentar de novo, então ele volta àquele pico de ansiedade, adrenalina do ganho, perda de novo. E assim vai esse ciclo. Ele tem um prejuízo funcional a semana toda”. O prejuízo financeiro também leva a uma bola de neve que gera mais ansiedade, vergonha e sentimentos de culpa. Começa uma fase de dissimulação junto à família e amigos para encobrir os desfalques financeiros gerados pelas apostas. A jovem Vanessa (nome fictício) é casada e começou a jogar pelo celular há quatro anos. Antes, só apostava de 10 a 20 reais. O valor foi escalonando no último ano até chegar ao máximo. “Eu recebi meu salário três horas da tarde e quando foi três e meia da tarde eu não tinha mais nenhum centavo na minha conta”, relata. A situação só piorou. "Eu gastei todos os cartões de crédito e quando a gente é um jogador compulsivo, a gente manipula, a gente mente. Então, quantas vezes eu mentia dizendo que eu precisava de um dinheiro pra um remédio ou de um dinheiro pra fazer uma compra pra minha casa. Meu vale-alimentação eu trocava por dinheiro”, admite Vanessa, que hoje está em recuperação. Mas dá pra ganhar dinheiro com Bets? O vício em apostas online atinge milhões de brasileiros e já é considerado problema de saúde pública. Reprodução/TV Verdes Mares Para o estatístico André Jalles, do Departamento de Estatística da Universidade Federal do Ceará (UFC), é possível ganhar, mas é improvável. “Existe uma falsa impressão de que a gente acaba começando ganhando. Não. A grande maioria começa perdendo. Isso é fato. Porque a chance de perder é muito maior, uma Bet não vai ter prejuízo. Agora a Bet pode tentar seduzir, te dá uns trocados para você fazer as primeiras apostas. É igual a um entorpecente”. Segundo o professor, a maioria das pessoas que teve algum ganho com bet, no somatório de tudo já aplicado, continua no prejuízo. “A gente pode pensar numa aula básica de probabilidade”, explica Jalles. “Por exemplo, um jogo de dados tem seis chances possíveis. Uma pessoa aposta numa face e a outra, em cinco faces. Se a pessoa que tem as cinco faces aposta cinco vezes mais que a pessoa que só tem uma face, o jogo ainda permanece honesto. O que é que acontece com a Bet? Na Bet, a banca tem muito mais do que as cinco faces e ela paga muito menos do que proporcional a essa probabilidade dela ganhar. Portanto, o jogo passa a ser desonesto.” O mecanismo de perda começa a gerar uma série de consequências mentais e aciona partes do cérebro que estimulam o vício. A psiquiatra Nayana explica que “é o que se chama de perseguir perdas. Na verdade, significa a pessoa que começa a ter as perdas, ter prejuízos, ao invés de parar, ela tem uma característica de tentar novamente. É como se fosse uma vontade, muitas vezes até mais urgente, de tentar novamente, apostar, para tentar recuperar aquela perda”. Para o psicólogo Magnum, o apostador “se ilude dizendo que ‘ah, eu estudei’, entendeu? Eu vou ganhar porque agora a sorte vai mudar. Então ele vai criando um mecanismo de proteção até dele mesmo, cerebral, que diz ‘não, na próxima eu ganho’ e vai criando uma ilusão e ele tá mascarando ansiedade, ele tá mascarando os sintomas depressivos que já apresenta em prol de uma adrenalina do jogo”. Transtornos associados e extremos Segundo especialistas, o vício em “bets” já é considerado problema de saúde pública e tem Classificação Internacional de Doenças (CID): Transtorno do Jogo. Reprodução/TV Verdes Mares Segundo especialistas, é muito comum que o transtorno do jogo esteja associado a outros. Nayana Holanda identifica, nos consultórios, os casos mais frequentes: “pacientes portadores de algumas comorbidades, como por exemplo, TDH ou algum transtorno de controle de impulso, também pessoas que têm história prévia pessoal de transtorno por uso de substâncias, outras dependências, no caso de algumas dependências químicas e também, às vezes, história pessoal ou também história familiar de jogo”. No caso da depressão, é difícil saber, segundo ela, qual é a causa e qual o efeito. “Às vezes uma pessoa que tem quadros depressivos, ansiosos, pode buscar recompensa com maior frequência nos jogos. E quando tem jogo, tem prejuízo, as perdas que vão se acumulando também podem alimentar sintomas depressivos ou sintomas ansiosos”. A evolução para cenários mais alarmantes acontece com frequência. “A gente tem que em torno de 40 até 60% dos pacientes que têm o transtorno do jogo pode ter alguma ideação suicida ao longo da vida, do transtorno, e em torno de 20% tem uma tentativa de suicídio”, alerta a psiquiatra. Problema coletivo Diante do cenário, muito mais do que um problema pessoal, o transtorno do jogo se torna uma questão de saúde pública. É o que mostra uma pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). De acordo com o levantamento, enquanto o Governo Federal arrecada 7 bilhões de reais em impostos com as bets, gasta mais de 38 bilhões com os problemas gerados. “A gente está falando de 17 bilhões, que é o gasto que a gente tem por mortes adicionais por suicídio, 10,4 bilhões em perdas de qualidade de vida por depressão e 3 bilhões em gastos médicos ligados à depressão”, pontua Rebeca Freitas, diretora de Relações Institucionais do IEPS. "A gente não tá falando do impacto só financeiro, quanto a população perde. A gente tá falando de um impacto que é um efeito muito profundo de custos intangíveis: o quanto a vida de uma pessoa piora em dor emocional, em incapacidade de trabalhar, piora na qualidade do sono, ruptura familiar, isolamento, sofrimento mental?" questiona Rebeca. O Instituto Brasileiro de Jogo Responsável contesta o dossiê do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. De acordo com nota divulgada, “o estudo usa projeções especulativas como fatos, trabalha com dados anteriores à regulamentação de 2025 e mistura custos e variáveis subjetivas sem comprovação de causalidade, gerando estimativas alarmistas e distorcidas.” Caminhos Roberto (nome fictício), cearense de 69 anos, conta que quase perdeu tudo por conta da dependência em jogos de azar. Bem empregado, com esposa e filhos, viu a rotina ruir após se tornar jogador compulsivo. “Prejuízo social, prejuízo econômico. O financeiro é maior, e assim, a questão da pessoa mesmo, como ser humano, entende? Eu, que sempre fui uma pessoa bem conceituada tô deixando me levar por esse esse vício maldito”, lamenta. “Esses últimos meses eu comprometi meu salário, cheguei a usar meu salário todo desviado, deixando de assumir compromissos, que eram compromissos sérios”. O homem ensaia, atualmente, os primeiros passos para se libertar da dependência, através da ajuda de grupos terapêuticos como o Jogadores Anônimos. Rebeca considera urgente o debate sobre controle e melhor regulação das apostas online. "A gente precisa enxergar essas apostas como um produto de risco, há necessidade de regulá-las como um problema de saúde pública. Acho que todo mundo aqui conhece pelo menos um caso de alguém que teve a sua renda comprometida, que adoeceu, né”. No caso do engenheiro, tratamento de saúde, grupos terapêuticos e a família foram essenciais para o processo de superação do vício. “Falando pela minha experiência, eu já tentei suicídio quatro vezes, de todas as formas que você possa imaginar. E de todas as vezes eu me apeguei a uma pessoazinha que é a minha afilhada, que tem 5 anos hoje. Se eu me for, quem é que vai cuidar dela? Então busquem ajuda enquanto é tempo. Essa é uma doença muito silenciosa.” Depoimentos como esse, aliados às estatísticas, reforçam a urgência do debate. “Nosso país tem uma escolha, que é repetir os erros que a gente já viu que estão acontecendo ou adotar uma regulação que seja sanitária, de fato, que seja uma regulação preocupada com a saúde da população brasileira. Eu acho que esse é o principal ponto de destaque”, enfatiza Rebeca. Assista aos vídeos mais vistos do Ceará:

FONTE: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2025/12/17/vicio-em-apostas-online-atinge-milhoes-no-brasil-e-ja-e-considerado-problema-de-saude-publica.ghtml


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